O ensinamento contido na parábola “Trabalhadores da Última Hora” à luz da
Doutrina Espírita, mostra a importância do trabalho e da boa
disposição que nos levará ao progresso individual e coletivo, além de evidenciar o papel
do Espírita na grande obra de Deus.
Os Espíritos esclarecem que, "o trabalho é uma lei da Natureza, e por isso mesmo uma necessidade. O Espírito também trabalha, como o corpo, e toda ocupação útil é trabalho".
Os Espíritos esclarecem que, "o trabalho é uma lei da Natureza, e por isso mesmo uma necessidade. O Espírito também trabalha, como o corpo, e toda ocupação útil é trabalho".
Quem são os trabalhadores chamados desde a primeira até a última hora?
• Por que os Espíritas são considerados trabalhadores da última hora?
• Quem são os trabalhadores do Senhor?
• Quais são as qualidades dos verdadeiros Espíritas?
• Qual é a missão dos espíritas e como contribuirão na grande obra da regeneração?
Os trabalhadores da última hora
Silvio Seno Chibeni
1. Introdução
Como todo estudioso do Espiritismo sabe, o título do presente artigo é o
título dado por Allan Kardec ao capítulo 20 de O Evangelho Segundo o
Espiritismo. O que poucos talvez tenham notado é que esse é o único capítulo
do livro que não possui comentários do próprio Kardec: à transcrição da passagem
evangélica – a intrigante parábola dos trabalhadores da última hora – seguem-se
imediatamente as Instruções dos Espíritos, em número de quatro. Isso, porém, não
passa de detalhe curioso, já que os textos de Kardec e os dos Espíritos
expressam um pensamento uno, não sendo raro que os primeiros superem os segundos
em alcance, clareza e precisão. O que mais importa são os ensinamentos contidos
no capítulo. Iremos, por economia de espaço, restringir nossa análise à parábola
e ao primeiro texto escolhido por Kardec para comentá-la, de autoria de
Constantino, Espírito Protetor, recebida em Bordeaux em 1863.
2. A parábola
Para comodidade do leitor, transcreveremos agora todo o texto da parábola
citado por Kardec. Notemos, desde já, que se trata de uma das muitas ocasiões em
que Jesus procura ensinar algo sobre Deus e as leis divinas – “o reino dos céus”
– por meio de uma comparação com uma estória envolvendo coisas e situações
ordinárias. Eis a parábola, registrada em Mateus 20:1-16:
O reino dos céus é semelhante a um pai de família que saiu de madrugada, a
fim de assalariar trabalhadores para a sua vinha. – Tendo convencionado com os
trabalhadores que pagaria um denário a cada um por dia, mandou-os para a vinha.
– Saiu de novo à terceira hora do dia e, vendo outros que se conservavam na
praça sem fazer coisa alguma, – disse-lhes: Ide também vós outros para a minha
vinha e vos pagarei o que for razoável. Eles foram. – Saiu novamente à hora
sexta e à hora nona do dia e fez o mesmo. – Saindo mais uma vez à hora undécima,
encontrou ainda outros que estavam desocupados, aos quais disse: Por que
permaneceis aí o dia inteiro sem trabalhar? – É, disseram eles, que ninguém nos
assalariou. Ele então lhes disse: Ide vós também para a minha vinha. – Ao cair
da tarde disse o dono da vinha àquele que cuidava dos seus negócios: Chama os
trabalhadores e paga-lhes, começando pelos últimos e indo até aos primeiros. –
Aproximando-se então os que só à undécima hora haviam chegado, receberam um
denário cada um. – Vindo a seu turno os que tinham sido encontrados em primeiro
lugar, julgaram que iam receber mais; porém, receberam apenas um denário cada
um. – Recebendo-o, queixaram-se ao pai de família, – dizendo: Estes últimos
trabalharam apenas uma hora e lhes dás tanto quanto a nós que suportamos o peso
do dia e do calor. – Mas, respondendo, disse o dono da vinha a um deles: Meu
amigo, não te causo dano algum; não convencionaste comigo receber um denário
pelo teu dia? – Toma o que te pertence e vai-te; apraz-me a mim dar a este
último tanto quanto a ti. – Não me é então lícito fazer o que quero? Tens mau
olho, porque sou bom? – Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros
serão os últimos, porque muitos são os chamados e poucos os escolhidos.
3. Começando a entender...
Das parábolas evangélicas, algumas são de compreensão relativamente fácil,
como a do bom samaritano (Lc 10:25-37) ou a do semeador (Mt 13:1-9), que o
próprio Jesus explicou aos discípulos (Mt 13:18-23). Outras, porém, trazem
dificuldades interpretativas consideráveis, exigindo mais meditação e maior
familiaridade com o conjunto da doutrina cristã para que um sentido razoável
seja alcançado. Dissemos um sentido, porque a riqueza alegórica dessas
estórias contadas pelo Mestre em geral deixa aberta a possibilidade de diversas
interpretações.
A parábola dos trabalhadores da última hora seguramente pertence à classe das
parábolas “difíceis”, já que compara o reino dos céus, onde tudo é justiça, com
uma situação aparentemente injusta: a remuneração igual a jornadas de trabalho
desiguais.
Não obstante essa dificuldade central, a parábola contém, felizmente, alguns
pontos mais ou menos claros, com os quais devemos principiar nossos esforços
interpretativos. Trata-se de várias “pontes” que ligam os elementos da estória
com o reino dos céus:
o pai de família
|
–
|
Deus |
a vinha
|
–
|
o Universo |
os trabalhadores
|
–
|
os seres humanos |
o trabalho na vinha
|
–
|
o trabalho no bem |
as horas
|
–
|
qualquer período de tempo |
o salário
|
–
|
a felicidade |
Embora nem todas as ligações sugeridas sejam triviais, acreditamos que sejam
as que mais naturalmente ocorrem a quem se dedique a entender o texto
evangélico. O sentido geral do ensinamento é que é difícil de apreender,
dado o aparente conflito da idéia de um Deus justo com o modo pelo qual o senhor
da vinha remunerou os trabalhadores. Logicamente, só temos duas opções para
eliminar o conflito: ou supomos que Jesus de fato pretendeu caracterizar Deus
como injusto; ou revemos nossa impressão inicial, de que o comportamento do
senhor da vinha foi injusto. Ora, como a primeira alternativa é insustentável,
face ao conjunto dos ensinamentos cristãos, temos de desenvolver a segunda
opção. Para tanto, comecemos atentando para o seguinte:
- O pai de família pagou aos trabalhadores da primeira hora exatamente o valor combinado, de modo que não os prejudicou, como ele mesmo lembrou quando eles se queixaram;
- Quanto aos demais, a parábola nada diz sobre acerto de salário, sugerindo-nos que os trabalhadores aceitaram a oferta de trabalho sem pré-condições;
- O próprio senhor da vinha justifica sua ação, dizendo que foi um ato de bondade: o denário que mandou dar aos que foram convocados mais tarde seria, pois, parte remuneração pelas horas que trabalharam e parte auxílio espontâneo.
Assim, quando consideramos os casos separadamente vemos que em suas relações
com cada grupo de obreiros o senhor nada fez de errado.
Mas mesmo nos termos em que a questão é colocada no item (c), ficamos
incomodados com o fato de que o senhor distribuiu o benefício-extra
desigualmente: quanto mais tarde chegaram, menor a parcela do denário
correspondente à remuneração, e portanto maior a que representaria o auxílio.
Talvez seja útil transpor a questão para situações de nosso dia-a-dia. Quando
saímos pela rua e damos esmolas desiguais a dois pedintes estaremos sendo
injustos? Quando contribuímos, em trabalho ou dinheiro, com duas instituições de
caridade, porém em maior medida a uma do que à outra, é injustiça?
Nossas reflexões sobre esse problema podem ser auxiliadas pelas considerações
expendidas por Constantino na mencionada instrução. Passemos, pois, a ela.
4. Recorrendo a Constantino...
O texto de Constantino compõe-se de quatro parágrafos, que passam
gradativamente aos níveis interpretativos mais alegóricos da parábola. O curto
parágrafo inicial atém-se ainda de forma quase que exclusiva ao sentido literal
do texto evangélico:
[§ 1] O obreiro da última hora tem direito ao salário, mas é preciso que a
sua boa-vontade o haja conservado à disposição daquele que o tinha de empregar e
que o seu retardamento não seja fruto da preguiça ou da má-vontade. Tem ele
direito ao salário, porque desde a alvorada esperava com impaciência aquele que
por fim o chamaria para o trabalho. Laborioso, apenas lhe faltava o labor.
Vemos que o Espírito destaca alguns aspectos importantes que ainda não
havíamos considerado. Há uma condição para o recebimento do denário: a
disposição permanente para o trabalho. Aqueles que foram contratados à terceira,
sexta, nona e undécima hora tinham boa-vontade, ansiavam por trabalhar.
Faltou-lhes, porém, a oportunidade. Quando o senhor da vinha os convocou,
aceitaram pressurosamente e, segundo se depreende, sem sequer inquirir pela
remuneração.
Visando a realçar esse ponto, no segundo parágrafo Constantino estende a
parábola para uma hipotética situação contrastante:
[§ 2] Se, porém, se houvesse negado ao trabalho a qualquer hora do dia; se
houvesse dito: “tenhamos paciência, o repouso me é agradável; quando soar a
última hora é que será tempo de pensar no salário do dia; que necessidade tenho
de me incomodar por um patrão a quem não conheço e não estimo! quanto mais
tarde, melhor”; esse tal, meus amigos, não teria tido o salário do obreiro, mas
o da preguiça.
As disposições positivas dos trabalhadores da última hora podem, assim, ser
entendidas como fatores que sensibilizaram o pai de família, induzindo-o ao
gesto de generosidade.
Ademais, vale lembra que ao perguntar, no item 930 de O Livro dos
Espíritos,acerca da situação das pessoas que se vêm impossibilitadas de
trabalhar por causas independentes de sua vontade, Kardec obtém a observação de
que “Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de
fome”. E, explicando o ponto, os Espíritos acrescentam: “Com uma organização
social criteriosa e previdente, ao homem só por culpa sua pode faltar o
necessário.” É, pois, uma clara alusão à solidariedade que os homens devem se
esforçar por implantar no mundo.
Felizmente, notamos que esse pensamento, de vanguarda para a época, já vem se
difundindo entre as lideranças mais lúcidas de nossa sociedade, tanto assim que
em muitos países já existe o seguro-desemprego, para acudir aos trabalhadores
que contingencialmente se encontrem sem oportunidade de emprego. Nenhuma pessoa
sensata classificaria de injusto esse dispositivo, muito pelo contrário.
Ora, nessa perspectiva o senhor da parábola seria alguém que, mesmo naqueles
tempos primitivos, teria sido tocado pela dificuldade daqueles homens que
impacientemente esperavam pela oportunidade de ganhar seu pão, solidarizando-se
com eles por meio, primeiro, da oferta de trabalho e, depois, pelo auxílio
pecuniário adicional.
Afastando-nos agora um pouco do sentido literal da estória, ensaiemos a sua
interpretação em termos do “reino dos céus”. Com base no que foi visto até aqui,
infere-se que com a parábola Jesus procurou salientar a virtude da boa-vontade e
da disposição para o trabalho. Num plano mais amplo, o trabalho não deve, é
claro, ser entendido unicamente como o trabalho ordinariamente assim
considerado, as atividades braçais e intelectuais passíveis de remuneração.
“Toda ocupação útil é trabalho”, conforme a resposta à questão 675 de O Livro
dos Espíritos. Tudo o que concorra para o desenvolvimento próprio, do
semelhante e, em geral, da criação, é trabalho, nessa conceituação estendida.
A mensagem mais evidente da parábola é, pois, a importância de nosso
engajamento nas atividades da “vinha” universal. Ele traz para nós o “salário”
da felicidade: o bem-estar físico, a satisfação intelectual, o prazer do cultivo
do Belo, a tranqüilidade moral.
A diversidade dos grupos de trabalhadores da parábola indica a diversidade
dos seres criados e das tarefas a desempenhar em cada estágio de sua evolução.
Deus reconhece essa diversidade, convocando cada um a seu tempo para as tarefas
adequadas ao momento. E contanto que haja disposição para o trabalho, todos
recebem o fruto de seus labores, por mais modestos que sejam. Não espera o
Senhor que, num dado “dia” todos desempenhem as mesmas tarefas. A meta de todos
deve ser a de colaborar cada vez mais na obra divina, mas a convocação divina
leva em conta a capacidade presente de cada um. A nós cabe estar permanentemente
dispostos ao labor, para que não sejamos como os servos imaginados por
Constantino, que receberam somente o “salário da preguiça”, ou seja, a
estagnação evolutiva.
Não somente a preguiça e a indiferença têm de ser evitadas, mas também a
afoiteza e a precipitação. Por falta de bom-senso, arriscamo-nos freqüentemente
em tarefas para as quais não estamos, presentemente, preparados. Pior ainda:
movidos pelo orgulho lançamo-nos em empreendimentos que se nos afiguram
“grandes”, não pelo bem que deles decorra, mas pela evidência em que nos
coloquem. O malogro parcial ou total, e a dura decepção de nossa vaidade é o
resultado inevitável de tais iniciativas.
A igualdade dos “pagamentos” que cada trabalhador de boa-vontade recebe
reflete a bondade divina, que valoriza tudo aquilo que venhamos a fazer na obra
do bem. Não ressaltou Jesus esse ponto na expressiva passagem do óbolo da viúva?
(Ver Mc 12:41-44 e Lc 21:1-4, bem como os comentários de Kardec a essa passagem
no item 6 do capítulo 13 de O Evangelho Segundo o Espiritismo.)
Outra virtude veladamente evocada pela parábola é o desinteresse. Conforme já
notamos, os trabalhadores da última hora e todos os demais que foram convocados
depois do início do dia aceitaram a oferta de trabalho sem perguntar quanto
ganhariam. Do mesmo modo, nossa meta é fazer o bem pelo bem, tão logo a ocasião
apareça, e não “por cálculo”, contabilizando os benefícios que dele nos
advenham. Kardec sabiamente inseriu um estudo sobre esse ponto logo após o
referente ao óbolo da viúva, nos itens 7 e 8 do capítulo 13 de O Evangelho
Segundo o Espiritismo. Todo esse capítulo, aliás, contém reflexões valiosas
sobre o assunto, complementando as fundamentais elucidações contidas na seção
inicial do capítulo “Da perfeição moral” de O Livro dos Espíritos.
Por fim, além da indolência e do interesse, mais um vício parece ser
exprobrado na parábola: a inveja (“Tens mau olho, porque sou bom?”). Vendo o
gesto de generosidade do pai de família, os trabalhadores da primeira hora
queixaram-se, muito embora no que lhes dissesse respeito ele houvesse agido com
correção. Aproveitando uma sugestão interpretativa feita anteriormente, seria
mais ou menos como se nos queixássemos do governo por conceder
auxílio-desemprego a um colega provisoriamente desempregado. Além de
injustificável inveja, faltaríamos com a solidariedade, que deve reinar entre os
homens em geral. (Questão deixada para o leitor: Quem os trabalhadores da
primeira hora poderiam simbolizar?)
5. Ainda com Constantino...
Após ter comentado, assim, a situação dos preguiçosos e indiferentes,
Constantino prossegue, penúltimo parágrafo da mensagem:
[§ 3] Que dizer, então, daquele que, em vez de apenas se conservar inativo,
haja empregado as horas destinadas ao labor do dia em praticar atos culposos;
que haja blasfemado de Deus, derramado o sangue de seus irmãos, lançado a
perturbação nas famílias, arruinado os que nele confiaram, abusado da inocência,
que, enfim, se haja cevado em todas as ignomínias da Humanidade? Que será desse?
Bastar-lhe-á dizer à última hora: Senhor, empreguei mal o meu tempo; toma-me até
ao fim do dia, para que eu execute um pouco, embora bem pouco, da minha tarefa,
e dá-me o salário do trabalhador de boa vontade? Não, não; o Senhor lhe dirá:
“Não tenho presentemente trabalho para te dar; malbarataste o teu tempo;
esqueceste o que havias aprendido; já não sabes trabalhar na minha vinha.
Recomeça, portanto, a aprender e, quando te achares mais bem disposto, vem ter
comigo e eu te franquearei o meu vasto campo, onde poderás trabalhar a qualquer
hora do dia.”
Agora não se trata mais da indolência do servo que despreza o trabalho, mas
da ação destrutiva daquele que, ao invés de ajudar, atrapalha a obra divina. A
extensão dos comentários de Constantino para esse tópico é particularmente
relevante para nós, Espíritos ligados à Terra. A observação dos fatos confirma a
classificação de Kardec na seção “Destinação da Terra – Causas das misérias
humanas”, do capítulo 3 de O Evangelho Segundo o Espiritismo, da Terra
como planeta especialmente destinado ao abrigo de Espíritos desajustados com as
leis divinas. Como reafirmaria depois Emmanuel, “todas as entidades espirituais
encarnadas no orbe terrestre são Espíritos que se resgatam ou aprendem nas
experiências humanas, após as quedas do passado, com exceção de Jesus-Cristo...”
(O Consolador, questão 243).
Também sabemos, à luz dos ensinos cristãos e espíritas, que nossa
interferência indébita na harmonia universal traz para nós conseqüências
negativas, sofrimentos e tribulações que visam a impor limites à nossa ação
maléfica, despertando-nos para o bem. Não desenvolveremos esse tema aqui, por
sobejamente explorado na boa literatura espírita.
Centremos nossa atenção nas singulares palavras de Constantino. Como entender
a reação atribuída ao Senhor, diante do servo mau: “Não tenho presentemente
trabalho para te dar...” ? Tolher-nos-ia Deus a oportunidade do trabalho depois
que falimos? Sabemos, por outro lado, que é somente pelo trabalho no bem que
repararemos nossos erros, apagando suas repercussões. (Ver o “Código penal da
vida futura”, no capítulo 7 da primeira parte de O Céu e o Inferno.)
Inspecionando mais atentamente o texto, vemos que o Senhor não impede para
sempre o servo “cevado em todas as ignomínias” de trabalhar em sua vinha. Depois
que reaprender a trabalhar construtivamente, ser-lhe-á novamente franqueado o
vasto campo de ação na vinha.
Mas por que esse impedimento temporário? É que a prática do mal pode de tal
forma destrambelhar-nos que, por algum tempo, naturais limitações nos advirão.
Seria como um motorista insensato, que provoca um acidente e vai hospitalizado.
Enquanto permanecer internado, não poderá desenvolver todas as atividades para
as quais estaria em princípio capacitado. É um período de recomposição.
Do mesmo modo, aos nossos desatinos espirituais sobrevém um estágio de
reequilíbrio, de aprendizado pela dor, de reflexão. Se, porém, esse estágio no
“hospital” divino nos limita em alguns aspectos – as idiotias, as paralisias, as
enfermidades degenerativas incuráveis, a miséria extrema, etc. – sempre
resta-nos a possibilidade de agir no bem pela paciência e resignação, pelos
esforços para corrigir-nos, pela gratidão a quem nos auxilie, pelo sorriso de
esperança, e por tantas outras formas.
6. Seriam os espíritas os trabalhadores da última hora?
Concluindo este nosso estudo, vejamos agora o último parágrafo do texto de
Constantino. Com base nele, bem como numa passagem da Instrução que o segue, de
Henri Heine, difundiu-se no meio espírita a idéia de que “os espíritas são os
trabalhadores da última hora”. Não é raro vermos esse pensamento exposto até
mesmo com uma certa ponta de orgulho. Afinal, na parábola os trabalhadores da
undécima hora são aqueles que mais se beneficiaram da magnanimidade do senhor.
Estaríamos todos, então, admitidos à vinha, com salário integral e tudo.
Será isso o que os Espíritos escreveram, ou deram a entender? Examinaremos
aqui apenas o que diz Constantino, pois a mensagem de Heine parte de uma
perspectiva diferente e requereria outro artigo. Eis o parágrafo:
[§ 4] Bons espíritas, meus bem-amados, sois todos obreiros da última hora.
Bem orgulhoso seria aquele que dissesse: Comecei o trabalho ao alvorecer do dia
e só o terminarei ao anoitecer. Todos viestes quando fostes chamados, um pouco
mais cedo, um pouco mais tarde, para a encarnação cujos grilhões arrastais; mas
há quantos séculos e séculos o Senhor vos chamava para a sua vinha, sem que
quisésseis penetrar nela! Eis-vos no momento de embolsar o salário; empregai bem
a hora que vos resta e não esqueçais nunca que a vossa existência, por longa que
vos pareça, mais não é do que um instante fugitivo na imensidade dos tempos que
formam para vós a eternidade.
A leitura atenta deste trecho não parece corroborar a referida interpretação.
Primeiro, a frase inicial qualifica os espíritas: “Bons espíritas...”. O
adjetivo ‘bons’ em geral passa despercebido! Logo, a frase não diz respeito aos
espíritas em geral, mas aos bons espíritas. E todos conhecemos a
impressionante lista de qualidades dos bons espíritas, que Kardec registrou no
capítulo 17 do Evangelho Segundo o Espiritismo, seções “O homem de bem” e
“Os bons espíritas”.
Além disso, a frase não tem o artigo definido ‘os’ antes de ‘obreiros da
última hora’, como normalmente se diz. A inclusão do artigo emprestaria ao
pensamento um ar de sectarismo e orgulho incompatível com a índole da doutrina
espírita. Os bons espíritas não são os obreiros da última hora, com a
implícita exclusão dos outros homens, mas simplesmente obreiros da última hora.
Eles são aqueles que passaram, numa “hora” relativamente recente da história da
humanidade, a trabalhar, ao lado de tantos outros, na vinha do Senhor.
E mais: nem mesmo entendida corretamente a comparação de Constantino serviria
de fundamento a qualquer sentimento ufanista no meio espírita. Afinal, os
trabalhadores da última hora não tiveram nenhum mérito relativamente aos da
primeira hora. Simplesmente são aqueles para quem, por uma razão ou por outra, a
tarefa chegou um pouco mais tarde.
Prosseguindo, o Espírito modifica um pouco a alegoria, ao salientar que mesmo
estes em geral ignoraram durante séculos os apelos do Senhor para o trabalho na
vinha! A rigor, então, os bons espíritas não deveriam se orgulhar nem mesmo de
terem sempre estado aguardando ansiosamente o chamado para a obra divina. Estão,
via de regra, na condição geral da humanidade terrena, de Espíritos que fizeram
mau uso de seu livre-arbítrio em passado próximo ou distante.
No entanto, o que os caracteriza – sem a exclusão de outros, repetimos – é
que agora já superaram aquele período de “hospitalização”, e reaprenderam a
trabalhar no bem. Esse o seu maior salário: a bênção de já poderem trabalhar na
construção de sua felicidade, mediante o amor ativo ao próximo e a si mesmos.
Que dizer agora dos espíritas que ainda não podem ser ditos bons?
Esses são os que, não obstante terem as luzes dos princípios espíritas ao seu
alcance, ainda resistem indolentemente a trabalhar, ou a trabalhar tanto quanto
sua condição permitiria; ou aqueles, em condição mais lastimável ainda, que
ainda se “cevam nas ignomínias” morais, sem envidar esforços para emendar-se.
É claro que essa classificação não é nítida, ou seja, não há apenas dois
grupos de espíritas. Há uma gradação contínua, começando naqueles francamente
retardatários e terminando nos que já entendem e vivenciam plenamente as
diretrizes divinas para os homens. Caberá a nós determinar, pelo exame isento de
nossos pensamentos e atos, nossa posição nessa escala, e incessantemente
procurar galgar posições cada vez mais avançadas, pela reparação de nossos
erros, pela superação de vícios e conquista de virtudes.
Referências bibliográficas
- Emmanuel. O Consolador. (Médium Francisco Cândido Xavier.) 8a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, 1940.
- Kardec, A. O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
- –––. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Trad. de Guillon Ribeiro. 111a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
- –––. O Céu e o Inferno. Trad. de Manuel Quintão. 28ª edição, Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, s.d.
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