Desenho animado é coisa séria: o imaginário infantil
e os conceitos espíritas
e os conceitos espíritas
1 - Uma guerra quase silenciosa
Interessante reportagem publicada em 29 de outubro de 2005 no caderno “Pensar” do jornal Correio Braziliense,
do Distrito Federal, falando do lançamento do livro do biólogo Ernst
Mayr, grande estudioso no século XX da obra de Charles Darwin, assevera
em suas linhas que vivemos uma guerra silenciosa no mundo atual, onde o
criacionismo e a teoria do “Design inteligente” se confrontam às ideias
evolucionistas originadas de Darwin. Apesar desta questão ter figurado
em artigos de outros jornais e até em programas televisivos, ela ainda
figura com um certo caráter de absurdo, com um ar de comicidade em face
da teoria evolucionista. Esse caráter tem-se apresentado de outras
formas. O palco dessa luta é o livro, a sala de aula, a conversa entre
os amigos durante o filme, e não está restrita apenas à nação
estadunidense. Já sabemos de casos aqui no Brasil de alunos que se
recusam a estudar e tiram zero nas questões sobre esse tema na
disciplina de biologia, por contrariar a sua crença. São ideias
“andando” por aí, contrapondo-se em provocações e debates acirrados, em
tempos de exacerbado fundamentalismo.
Essa guerra típica de séculos diferentes revela que as ideias estão
imbricadas nas diversas expressões, de uma simples aula a uma música, e
se espalham e se contrapõem em fóruns diversos. Outra “revolução”
silenciosa dos conceitos teológicos transmitidos está ocorrendo, sem ter
alcançado, entretanto, as páginas dos jornais, como a questão de o
“homem ter vindo do macaco”. Imagino que isso ainda causa furor nos mais
orgulhosos porque vai de encontro a conceitos estabelecidos por séculos
pelas religiões dominantes no mundo ocidental.
O objetivo deste artigo é analisar ideias que estão sendo transmitidas
para o público infantil nos programas destinados a esse público,
mormente no tocante aos conceitos que se coadunam com as ideias
espíritas, e mostrar como esse material pode ser utilizado pelo pai e
evangelizador na formação conceitual das crianças.
2 - TV criança
Na época do lampião de querosene, a diversão da petizada era correr na
rua, brincar de pião, de cabra-cega e uma série de jogos e cantigas,
atividade que persiste até hoje em muitas regiões do país e por força de
muitos educadores. Na década de 60, televisão era aquele artigo de luxo
que apenas um menino de cada rua tinha e, por isso, reunia-se toda a
rua para assistir aos programas na casa do menino. Era o início da TV,
onde tudo era novidade e nesses quarenta e poucos anos muita coisa
mudou. Falamos hoje da TV Digital, da interatividade. Fomos invadidos
pela cor, pelos efeitos especiais e pelas várias opções de canais da TV
por assinatura. No Brasil, cerca de 14% da população tem acesso a TV por
assinatura e 90% tem acesso à TV aberta e estima-se que a criança
brasileira passa em média três horas em frente à tela, a maior média do
mundo, conforme atestou pesquisa da Universidade de Brasília divulgada
na revista VEJA de 18/1/2006.
A TV transformou-se em ferramenta didática e entrou para a escola.
Filmes, seriados, novelas e desenhos voltados para o público infantil e
produzidos no mundo todo fazem da TV o substituto da babá contadora de
histórias. Esses programas
que invadem a nossa residência sem pedir licença trazem no seu
simbolismo e no seu roteiro conceitos oriundos por vezes da cultura do
país produtor ou, por vezes, um mero merchandising cultural de hábitos e
valores, inseridos conscientemente para estimular de maneira subliminar
o consumo de determinados produtos, a inclusão, o combate ao
preconceito, o ódio a um inimigo do país e até valores de conduta.
3 - A influências das histórias e dos personagens
Contudo, como essas histórias e personagens podem traduzir para as
crianças conceitos e visões de mundo que podem interferir nos seus
próprios conceitos? Os desenhos infantis substituem os antigos
contadores, os narradores de outras épocas, que narravam o cotidiano e o
maravilhoso. A grande diferença é que a história hoje já vem com texto e
imagem, já mastigada, com muita informação e pouco espaço para a
interpretação e a imaginação, permitindo reduzido espaço para a
discussão. Os contos de fadas apresentados nos desenhos modernos
apresentam a raiz de ser um instrumento psicológico para a criança
enfrentar um mundo cheio de dificuldades, buscando a identificação com
heróis, tendo hoje como diferencial a inserção de relações complexas e
longas entre os personagens, com raízes psicanalíticas, onde persiste a
“moral da história”, geralmente associada ao pensamento chamado de
“politicamente correto”.
Essas histórias então apresentam às nossas crianças soluções de como
enfrentar o mundo, heróis, ídolos, fórmulas de conduta e verdades
contextuais. Sim, cada desenho tem uma lógica, um conjunto de regras que
funcionam como a “verdade” daquele desenho. Por exemplo, no “Tom &
Jerry”, apesar de não falar verbalmente, os animais (gato e rato) pensam
e se comunicam, o que difere da realidade, mas para aquele desenho é
uma realidade contextual. A criança no seu mundo da imaginação importa
aquelas verdades contextuais e volta ao nosso mundo, em suas viagens de
revivência das histórias.
Essas verdades contextuais influenciam a forma da criança ver o mundo, pois ela vive ali um mundo com novas regras. Ela não poderá voar como o “Peter Pan”, mas a verdade contextual de não querer crescer pode ser para ela uma verdade interior e exterior. A criança aos poucos vai descobrir que ela não pode disparar raios pelas mãos, mas aos poucos também descobre que, se não enfrentar o mundo, não conseguirá superar os obstáculos. Essas lógicas vão se confrontando e construindo as visões de mundo da criança, mediando o seu mundo de fantasia com o mundo real.
Essas verdades contextuais influenciam a forma da criança ver o mundo, pois ela vive ali um mundo com novas regras. Ela não poderá voar como o “Peter Pan”, mas a verdade contextual de não querer crescer pode ser para ela uma verdade interior e exterior. A criança aos poucos vai descobrir que ela não pode disparar raios pelas mãos, mas aos poucos também descobre que, se não enfrentar o mundo, não conseguirá superar os obstáculos. Essas lógicas vão se confrontando e construindo as visões de mundo da criança, mediando o seu mundo de fantasia com o mundo real.
A questão é que essa lógica do mundo da fantasia sempre foi
monopolizada. Por questões de ideologia dominante e de cultura do
produtor, os desenhos mais antigos, como o citado “Tom & Jerry”,
“Pica-Pau”, “Popeye, o marinheiro” ou “Mickey”, sempre trataram as
questões teológicas mais cruciais, como Deus e a vida após a morte, de
forma secular e clássica, representando sempre a oposição entre anjos e
demônios, o céu de nuvens e o inferno flamejante, bem ao estilo
medieval, com caldeirão e harpas. O contexto geopolítico também era
outro... Desse modo, esses paradigmas eram reforçados e naturalizados
nas crianças que assistiam àqueles desenhos.
4 - Os conceitos espíritas
Com a década de 80, com a queda do muro de Berlim, o início da
globalização, o mundo começou a intercambiar mais as suas culturas. Com a
ampliação das comunicações, com a internet e a TV por assinatura, com a
entrada de desenhos de outros países, mormente os europeus e os
japoneses, o eixo ideológico desses desenhos mudou. As culturas desses
países vinham agora imbricadas nesses novos desenhos e a queda de
modelos mais tradicionais, o avanço da corrida espacial e da astronomia,
tudo isso fez com que as temáticas teológicas tivessem outra abordagem
nas verdades contextuais dos desenhos animados. A imaginação necessária à
competição precisa alçar voos e toda visão de mundo era importante para
construir uma nova história. O público, mais crítico e esclarecido,
tornava-se mais exigente e queria mais informações.
Para ilustrar esse que é o ponto central deste artigo, vamos citar
alguns desenhos voltados para o público infantil bem recentes, a maioria
em exibição ainda, identificando neles conceitos similares aos
conceitos espíritas, descritos na tabela a seguir:
Índice
|
Conceito Espírita
|
A
|
Evolução dos Espíritos
|
B
|
Comunicabilidade dos Espíritos com os encarnados/Imortalidade da alma
|
C
|
Pluralidade dos mundos habitados
|
D
|
Pluralidade das existências (Reencarnação)
|
Na lista a seguir vão os desenhos e, caso o leitor tenha dificuldade de
identificar ou saber mais sobre algum dos títulos, pode perguntar para o
seu filho ou sobrinho, que ele certamente saberá. Certamente, a maioria
desses desenhos tem uma carga grande de violência, em muitos casos
explícita, mas não é nosso propósito avaliar o desenho em si e sim
verificar a mudança de conceitos transmitidos.
INU YASHA - Sucesso japonês, conta a história de uma
menina que entra em um poço no fundo do seu quintal e lá retorna no
tempo até o Japão feudal, onde vive situações relacionadas à sua
encarnação nessa época, como uma sacerdotisa. Conceito: D.
AVATAR - Desenho recente da Nickelodeon, fala de um
tempo na China onde as pessoas dominavam os elementos ar, água, terra e
fogo e o Avatar que estabeleceria a ordem é aquele que já encarnou nas
tribos dos quatro elementos. Conceito: D.
DRAGON BALL –
Desenho japonês inspirado em uma lenda chinesa, conta a história de um
menino com rabo de macaco e muito forte que na verdade veio de outro
planeta e vive aventuras na Terra, em busca das esferas do dragão. Tem
vários episódios ocorridos no “mundo espiritual”. Conceitos: B e C.
YU YU HAKUSHO - Desenho japonês onde Yusuke Urameshi é
um jovem indisciplinado que perde a vida ao salvar uma criança de um
atropelamento. Por recompensa, ele se torna um “detetive” do mundo
espiritual, travando neste grandes batalhas. Conceito: B.
OS CAVALEIROS DO ZODÍACO - Outro grande sucesso
nipônico, em que jovens de um orfanato são criados por um milionário que
os treina para se tornarem cavaleiros com armaduras especiais para
salvar a Terra de um perigo iminente e defender a jovem Saori,
reencarnação da Deusa Athena. Conceito: D.
A MÚMIA - Desenho norte-americano inspirado na
refilmagem de um clássico de 1932 trata de uma família de arqueologistas
contra uma múmia que volta a viver. Baseado na mitologia egípcia, trata
da reencarnação de personagens com grande naturalidade. Conceito: D.
SHAMAN KING - Desenho japonês que narra a aventura de
jovens xamãs (médiuns) que, com a ajuda de Espíritos guerreiros do
passado, travam batalhas “incorporados” entre si. Conceito: B.
DISNEY - O megaestúdio Disney tem produções com
temáticas interessantes, como Irmão Urso e Mulan, que apresentam
contatos ostensivos com entidades já desencarnadas e outros como Little e
Stitch e o Galinho Chicken Little, que tratam naturalmente da vida em
outros planetas. Conceito: B.
STAR WARS - A saga de seis filmes de George Lucas que
resultou em diversos desenhos correlatos, além de considerar a vida em
outros planetas, fala da “força”, um tipo de fluido que pode ser
manipulado. Apresenta também personagens desencarnados que realizam
aparições e se comunicam com os encarnados. Conceitos: B e C.
GHOSTBUSTERS - Desenho inspirado no filme de sucesso
que teve na sua continuação a formação de um grupo que resolve montar
uma empresa para caçar fantasmas. Conceito: B.
SCOOBY-DOO –
O velho cão medroso e o seu amigo ainda fazem muito sucesso, em filme
ou nos desenhos. A comunicação com os Espíritos é na maioria das vezes
revelada como um embuste com fins comerciais. Entretanto, os episódios
nunca negam a existência desses fenômenos. Conceito: B.
MARTIN MYSTERY - Um jovem estudante e a sua irmã
acompanhados de um homem das cavernas são membros de uma agência que
investiga eventos paranormais em vários planetas, aparecendo nos
episódios toda sorte de fenômeno mediúnico. Conceitos: A, B e C.
A TURMA DA MÔNICA - Os nossos queridos personagens
brasileiros esbanjam conceitos como o astronauta que visita outros
planetas, o dinossauro Horácio e o Piteco na pré-história e a turma do
Penadinho, que sempre traz aspectos da reencarnação e da mediunidade.
Conceitos: A, B, C e D.
DINOSSAUROS - Diversos desenhos de várias
nacionalidades têm como pano de fundo a questão dos dinossauros,
caracterizando as ideias de evolução. Conceito: A.
DANNY PHANTOM - Desenho norte-americano que narra as
aventuras de um menino filho de caçadores de fantasmas que por um
acidente passa a poder se transformar em fantasma e combate os espectros
do mal na busca de defender a sua cidade, com diversos fenômenos
mediúnicos nos episódios, como incorporação. Conceito: B.
HARRY POTTER - O bruxinho mais famoso do planeta,
ratificando sua origem inglesa, apresenta fantasmas do passado passeando
pela escola e conversando com os alunos em todos os filmes. Conceito:
B.
Como podemos verificar, a lista é extensa e com certeza incompleta.
Pergunte a qualquer criança e com certeza ela já viu algum desses
desenhos, pois são todos bem recentes. Além disso, a maioria tem a sua
versão em livro ou em quadrinhos.
Obviamente, os conceitos apresentados nos desenhos apresentam várias distorções dos conceitos espíritas, mas isso não invalida que foi rompida a hegemonia do paradigma anterior de céu versus inferno. Como era de esperar, a predominância é nas questões da mediunidade e suas facetas e na vida em outros planetas, fruto dos avanços da astronomia e das descobertas da Transcomunicação Instrumental e estudos afins, sendo que os desenhos orientais apresentam mais a questão da reencarnação, que enriquece muito a trama.
Obviamente, os conceitos apresentados nos desenhos apresentam várias distorções dos conceitos espíritas, mas isso não invalida que foi rompida a hegemonia do paradigma anterior de céu versus inferno. Como era de esperar, a predominância é nas questões da mediunidade e suas facetas e na vida em outros planetas, fruto dos avanços da astronomia e das descobertas da Transcomunicação Instrumental e estudos afins, sendo que os desenhos orientais apresentam mais a questão da reencarnação, que enriquece muito a trama.
5 - Como potencializar isso?
Como dito, certamente os nossos alunos da evangelização ou filhos
assistem ou já assistiram a pelo menos um desses desenhos. É inevitável,
pois eles estão na escola, nos produtos licenciados e no jornaleiro.
Essa relação que o nosso evangelizando/filho estabelece com um desses
programas é uma oportunidade ímpar de explorar os conceitos espíritas e
até morais ali contidos e criar uma discussão frutífera sobre o tema.
Hoje a educação toda gira em torno de trabalhar a partir da realidade do aluno. Se nessa realidade já estamos encontrando conceitos que são afins com os nossos conceitos espíritas, nós temos que trazê-los para a análise crítica. Não nos cabe somente ver o mundo contido na doutrina espírita e sim identificar a doutrina espírita no mundo. Como o apelo e a influência desses desenhos sobre as crianças são enormes, o ponto de convergência deve servir de “fio da meada” para iniciar uma discussão de conteúdo. Se na sala de casa com os amigos, assistindo a um desses desenhos, o nosso evangelizando/filho explicar o que realmente aconteceu à luz da doutrina espírita, o conceito ali se consolidou.
Hoje a educação toda gira em torno de trabalhar a partir da realidade do aluno. Se nessa realidade já estamos encontrando conceitos que são afins com os nossos conceitos espíritas, nós temos que trazê-los para a análise crítica. Não nos cabe somente ver o mundo contido na doutrina espírita e sim identificar a doutrina espírita no mundo. Como o apelo e a influência desses desenhos sobre as crianças são enormes, o ponto de convergência deve servir de “fio da meada” para iniciar uma discussão de conteúdo. Se na sala de casa com os amigos, assistindo a um desses desenhos, o nosso evangelizando/filho explicar o que realmente aconteceu à luz da doutrina espírita, o conceito ali se consolidou.
6 - Conclusão
Às vezes tendemos a isolar ou ignorar o material divulgado pela TV por
ferir a pureza doutrinária. O fato é que a revolução silenciosa dos
conceitos teológicos está aí. Porém, raramente um desses desenhos será
integralmente fiel aos conceitos doutrinários, até porque sua finalidade
é outra. Certos mecanismos conceituais básicos podem ser ilustrados a
partir destes elementos da realidade das crianças, permitindo a elas um
melhor discernimento. Fugirmos disso é cairmos em uma redoma, bem
próximo dos nossos amigos criacionistas.
Marcus Vinicius
de Azevedo Braga é pedagogo, evangelizador infantil e frequenta o
Grêmio Espírita Atualpa em Brasília (DF), tendo editado em 2001 o livro
“Alegria de servir” pela FEB.
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