Por
mais escuro que seja o futuro, a utopia e a fé são uma ponte lançada
sobre essa escuridão, para sondá-la, nela apoiar o pé e aí construir, à
proporção que ela se torna presente pelo nosso aproximar-se.
Tudo é luta na vida. É a
vida uma contínua tensão para vencer em qualquer plano. Nas suas fases
mais primitivas, vencer a fera inimiga; na atual fase de vida em
sociedade, vencer o próximo a fim de suplantá-lo; no biótipo do
super-homem vencer para subjugar e superar as leis inferiores da
animalidade e dar ao mundo novas diretrizes. Lutar para vencer, ou seja,
para elevar-se, ascender, evolver. A lei suprema da evolução toma a
forma de luta desesperada, para remir-se da dor e do mal e conquistar a
felicidade. Esta encontra-se escrita e arde perenemente no fundo da alma
humana, como um instinto, um anseio inextinguível, um sonho, uma fé,
como uma utopia que sabemos fugir longínqua e inatingível, mas na qual o
homem é obrigado a crer, contra todas as aparências e dificuldades, até
ao desespero. Isto porque, sem tal fé num futuro melhor, mesmo que
pareça loucura, não teria o homem mais conforto na fadiga de ascender,
nem mais finalidade na sua caminhada, nem luz alguma de esperança no
amanhã.
São por isso importantes
elementos a utopia e a fé e fazem parte integrante da mecânica da vida.
Por mais que desprezem tudo isso os céticos e os práticos positivos, se
existe isso na vida, alguma função deve ter, e é justamente a de
antecipar o futuro. A série das mesquinhas, ilusórias e instáveis
aquisições, que estão ao nosso alcance na existência terrena, não é
suficiente para dar finalidade e justificação a todo o trabalho imenso
que realiza a nossa existência, como indivíduos e como sociedade. E não
podemos dizer que vivemos para perder tempo, inutilmente, e para sofrer.
Se cada fenômeno, se cada ato nosso é um caminho para uma finalidade, o
fenômeno e o ato máximo, que são a nossa vida e o funcionamento do
universo, como poderiam deixar de ter uma finalidade? Por mais escuro
que seja o futuro, a utopia e a fé são uma ponte lançada sobre essa
escuridão, para sondá-la, nela apoiar o pé e aí construir, à proporção
que ela se torna presente pelo nosso aproximar-se.
Respondem, pois, a
utopia e a fé a necessidades criadoras, que representam verdadeiras
funções biológicas de sondagem no desconhecido e de preparação para o
porvir. A luta pelo ideal, isto é, pela superação das velhas formas de
vida, a fim de progredir realizando outras mais evolvidas e
aperfeiçoadas, é uma das formas, e a mais elevada, da luta pela vida. Se
nos primeiros degraus da evolução biológica consistia tal luta apenas
em salvar, por qualquer meio, rude e feroz, a própria existência contra
os elementos hostis e o assalto das feras; se hoje a mesma luta assumiu
formas de competição política e econômica, próprias da vida social; para
alguns biótipos mais adiantados, pode assumir essa luta outra forma: a
que se dirige contra o lado humano mais involuído, específico do
primitivo feroz, lado que ainda sobrevive em nossos instintos, ou seja,
luta para superar o plano biológico do animal, de que faz parte ainda o
nosso corpo físico. Significa isto libertar-se das formas de existência
inferior, para ter acesso a outras superiores, não só na forma de
progresso individual de quem realiza essa luta, mas também na forma de
progresso coletivo para povos assim guiados a formas mais evolvidas de
convivência.
Do livro Problemas Atuais - cap 1
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